Por 38 anos, todos os campeões mundiais de surfe falavam inglês, de repente um moleque que impregna o lineup mais que qualquer outro, chegou, arrombou as portas da comodidade australiana, americana e havaiana (sim, no surfe havaiano se nega a ser americano) e se tornou o primeiro campeão mundial sem ter o inglês como língua mãe, o nome dele? Gabriel Medina.
Em 2014, o país do jeitinho e do futebol vivia um luto profundo, a Alemanha completamente reconstruída pós-guerra, destruiu os sonhos de uma vitória brasileira em uma copa do mundo no Brasil, com o inesquecível (para os amantes do futebol) massacre do Mineirão, aquele tal 7x1. Ao final daquele fatídico ano para o esporte mais popular do Brasil, Gabriel Medina, até então mero desconhecido fora do surfe, lavou a alma salgada dos surfistas brasileiros, acabou com a nossa síndrome de vira lata e venceu o nosso primeiro título mundial de surfe, um título que sempre esteve presente nos nossos sonhos, más ainda assim, um título que parecia ser impossível para nós, sempre acostumados a sermos o patinho feio do surfe mundial. Em 2014 saímos da condição de eternos sonhadores e desacreditados, para nos tornamos campeões mundiais convictos, tão convictos que, além de nós surfistas, boleiros de todo Brasil renderam-se ao talento do garoto, indo além, pela primeira vez o surfe foi mostrado em rede nacional e um surfista se tornou pop star no Brasil do futebol, no ano do hexa que não veio, Gabriel Medina reinou, no Brasil e no mundo.
De posse do tão sonhado título mundial, o ano competitivo de 2015 chegou e ficou claro que o surfe do Brasil não era música de uma nota só, Gabriel mostrou que podia e despertou nos brasileiros uma imensa apetite para as vitórias, o título de Gabriel extirpou em definitivo o complexo de inferioridade do surfe brasileiro, os efeitos da vitória em 2014 foram tão bombásticos que, no ano seguinte vimos uma cena que nem em nossos melhores sonhos foi imaginada, um brasileiro entregando o troféu de campeão mundial para outro brasileiro, Adriano cumpriu sua missão de vida e recebeu de Gabriel o troféu de campeão em 2015, de lá para cá além dos dois campeões mundiais, Filipe e Ítalo se mostraram competitivos para o feito e venceram muitas etapas, más nenhum deles, foi tão vencedor quanto Gabriel.
Desde seu título em 2014 Gabriel colecionou um absurdo número de vitórias, fãs, seguidores e muita, muita antipatia no mundo do surfe, muita do tipo 2/3 do universo do esporte, não dá para apontar um fator que justifique essa antipatia, porém, talvez ela se dê por ele ser o cara que promoveu os “hilários surfistas brasileiros” ao patamar de maior potência do surfe mundial da atualidade, a figura de Gabriel impõe a australianos, americanos, havaianos, sul africanos e todos os demais no circuito a “sensação de ser imbatível”, essas palavras não são desse colunista, e sim do Peter Mel, contudo, é inegável, também temos essa impressão todas as vezes que o champ entra em uma bateria, desde que seus adversários não sejam o Julian ou Ítalo, suas “kriptonitas”.
Dentro do circo do surfe todos alegam gostar de Gabriel, más só Mick, Parko, Owen, Frederico Morais, Julian, JohnJohn, Shane Dorian, Barton Lynch e os brasileiros demonstram isso, antipatias a parte, Gabriel impôs ao mundo do surfe, uma comunidade bastante isolada, algumas particularidades que nem o maior campeão de todos os tempos conseguiu, coisas do tipo: Ser indicado pela Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, ter mais seguidores que a entidade que rege o esporte tem, além de ter mais que Kelly, JJF e Filipe juntos, quando se fala em números competitivos, Gabriel é quase tão grande quanto Kelly, em 07 temporadas desde seu início no circuito, Gabriel venceu 12 competições e se tornou bicampeão mundial, apenas como comparativo, Joel Parkinson, um dos maiores ídolos do surfe, em 17 anos na elite foi campeão mundial e venceu o mesmo número de etapas que o brasileiro (até então, certamente será superado), seus adversários atuais mais vitoriosos são Julian Wilson, John John Florence e Filipe Toledo, com a exceção de Filipe que tem 7 troféus, Julian e JJF não alcançam nem a metade das vitórias do brasileiro, desde seu título em 2014, ele nunca termina o ranking em posição inferior a top 3, e, nos últimos quatro anos ele é o maior vencedor do tour, isso parece ter incomodado muito, somando a tudo isso, o domínio brasileiro e a falta de expectativas de americanos e australianos para voltar a vencer títulos, esse conjunto de fatos parece estar derretendo a frieza emocional da gringaiada, e Gabriel personifica tudo isso, nós o amamos, os gringos odeiam.
Mais uma vez em ano de copa do mundo, Medina deu sinais logo no início da temporada que estava com mais apetite que em anos anteriores, o bicampeonato de John John foi o ingrediente que ele precisava, se é que ele precisa de algum, o brasileiro iniciou o ano fazendo uma boa perna australiana, consegui um bom resultado em Bells, uma onda que parece ser difícil para ele, continuou bem na Indonésia e África do Sul, más ao rever um de seus casos de amor, “Teahupoo”, o garoto parece ter sido abençoado pelos deuses dos oceanos, ele começou um ataque assombroso na tentativa de entrar no seleto grupo onde estão Tom Carroll, Damien Hardman e John John Florence, o grupo dos bicampeões mundiais. Para isso ele ainda venceu na piscina, fez duas semifinais na Europa, e para finalizar, no Havaí, onde ele se mostrou favorito desde o primeiro dia, com apresentações memoráveis e notavelmente superiores às de seus adversários Filipe Toledo e Julian Wilson, enfim, o brasileiro sagrou-se incontestavelmente bicampeão mundial e Pipe Master.
No caminho do título Gabriel fez baterias heroicas, contra Conner Coffin o “World Title contender” ficou em combinação de 14.26, era possível ver a tranquilidade que essa combinação causou no Conner, o americano é um excelente surfista, más não se mostrou estratégico, não soube avaliar os riscos que é surfar contra Gabriel Medina, provavelmente Conner imaginou que aquele placar seria capaz de desestabilizar qualquer surfista, só esqueceu que, seu companheiro de equipe não é qualquer surfista, tranquilão no outside o americano viu Gabriel dropar para Pipe, passar várias sessões, sair na baforada e receber 9.43. Na seqüência, parecendo já abatido, ele viu o champ se jogar em uma craca para o Back Door, fazer o melhor tubo da competição, e pela segunda vez em sua carreira anotar um 10 perfeito nas difíceis direitas de Oahu, difíceis para os regulares, quase impossíveis para os goofys, para Gabriel parecia ser um parque de diversões, em duas ondas, Gabriel saiu de uma combinação mediana e colocou o Conner em uma comb sem freios, sem vidros, sem portas, sem saída, foi educativo, o Conner certamente voltará mais forte na próxima temporada. Quanto a nós, ao final daquela bateria já tínhamos a certeza do título, mesmo que ainda faltasse o Jordy.
Surfando a bateria que resumiria seu ano, Gabriel viu Jordy abrir on fire, o sul africano esbanjou estilo, segurança e competência para fazer em dois minutos uma somatória de 15.83, Gabriel saiu atrás pela segunda vez, más, além de surfe um campeão precisa de equilíbrio emocional e inteligência competitiva, Gabriel usou tudo isso para virar o jogo, sem a prioridade, o brasileiro passou a remar insanamente de um lado para outro, com o exemplo do Conner, Jordy não tinha outra opção além de marca-lo, ao ver uma serie, o champ remou como se fosse detentor da prioridade, Jordy colou nele como um verdadeiro caçador, deu a impressão de esquecer as ondas e focar apenas na figura de Gabriel, nesse momento o brasileiro virou e remou forte, simulando querer entrar na onda, forçando Jordy a se defender e entrar em uma fecahadêra, Gabriel puxou o bico e Jordy despencou do quarto andar, ficou claro que alí, naquela imensa vaca o sul africano perdia a bateria. O jogo mental de Gabriel também é de campeão, ele foi estratégico o suficiente para usurpar a prioridade do adversário, depois disso ele fez um 9.10, novamente para o BackDoor, virou o jogo e colocou as duas mãos na taça, ao entrar na onda da vaca Jordy era líder, isso o parece tê-lo abalado, ao sair do mar ele estava derrotado, e assim Gabriel Medina oficialmente foi coroado bicampeão mundial de surfe profissional.
Apesar de entrar em todas as baterias para vencer, parece que não é simplesmente a vitória que alimenta Gabriel, como todo predador, a corrida para alcançar o objetivo parece ser mais importante, a adrenalina da perseguição parece ser seu combustível, quando o adversário é realmente uma ameaça, desperta no brasileiro seu verdadeiro espirito predador, nesses momentos ele entra no modo matador, absoluto, superior e único na atual liga mundial de surfe, e isso é uma das coisas mais sensacionais de assistir, para massagear nosso ego, sobretudo aqueles que assim como esse colunista acompanha o surfe desde o início dos anos 80, Gabriel é brasileiro, e, sua imagem é a personificação de nossa virada de mesa, ele nos tirou do status de meros coadjuvantes para a principal nação do surfe mundial, sim, o país do futebol na verdade é o país do surfe.
Já como bicampeão mundial, Gabriel protagonizou com seu principal adversário, não somente adversário na briga pelo título do mundial, não somente adversário na briga pelo título do Pipe Masters, más sim o principal adversário de toda sua carreira, o australiano Julian Wilson, a final mais eletrizante dos últimos anos em Pipeline, digna dos dois surfistas mais completos da atualidade, os caras entubaram com maestria, fizeram bons scores, foram frios e calculistas, foi uma bateria como todas as outras entre Gabriel e Julian, mas para nossa felicidade, o dia era de Gabriel Medina, ele foi absoluto, fez um 8.77 e 9.57, somando incríveis 18.34, Gabriel não deus chances a Julian, dando o troco no aussie pela final de 2014, fechando o ano como bicampeão mundial, Pipe Master e orgulho de uma nação de surfistas e não surfistas. Parabéns é o mínimo que podemos dizer a Gabriel Medina, em um país onde exemplos ruins exalam diariamente nos massacrando e escravizando nossas mentes, ver um brasileiro se impor e vencer nas mais diferentes esquinas do mundo com base no talento e meritocracia, nos enche de orgulho, já lhe demos os parabéns, agora é a hora do OBRIGADO GABRIEL.
É importante falar que Gabriel é a personificação da supremacia brasileira no surfe mundial, dito isso, não podemos esquecer que existem muitos outros, Alejo Muniz, Miguel Pupo, Wigolly Dantas, Caio Ibelli, Jadson André, Ian Gouveia, Jessé Mendes, Yago Dora, Michael Rodrigues, Italo Ferreira, Adriano de Souza e Filipe Toledo, formam uma geração vencedora, destemida e orgulhosa de seus feitos, não atoa apelidada pelos gringos de “Brasilian Storm”, Adriano já é campeão mundial, Ítalo e principalmente Filipe estão no caminho do título, a hora deles vai chegar. Além de Gabriel, Owen e Ítalo estão criando a goofy revolution, acreditamos que, pela primeira vez vemos três goofys com chances reais de vencer campeonatos e títulos, além disso, Gabriel se igualou ao mestre Tom Carroll, até então o mais bem-sucedido goofy no tour.
Com todas essas barreiras vencidas ainda existem desafios para Gabriel? Os mais apaixonados diriam que não, nós acreditamos que sim, existem duas ondas que ainda representam desafios para o maior surfista brasileiro de todos os tempos, elas se chamam Bells e Jeffreys Bay, embora Gabriel já tenha feito semifinal nas duas, nenhum resultado é justo para Gabriel se não for uma vitória, ele precisa vencer nessas ondas para dizer, eu venci tudo, se fizéssemos parte de seu entourage, focaríamos nisso.
Algumas observações devem ser feitas:
1. Filipe só falta superar as ondas ocas para ser campeão, isso não está longe!
2. Para Julian só falta superar a síndrome de “Taj”, ele é completo.
3. Kelly passou por Gabriel dentro d’água enquanto a buzina tocava e surgia um novo bicampeão, o americano se quer olhou para o brasileiro, depois de Gabriel ser cumprimentado por todos no lineup (Jordy e Julian), ele voltou e remou em direção ao brasileiro e deu um discreto parabéns.
4. Ao final do campeonato o unodecacampeão fez uma postagem rasgando elogios ao Filipe Toledo e ignorou por completo o título de Gabriel, porque será?
5. Seria bom ter visto o John John, vizinho do palanque do Pipe Masters e último campeão mundial, entregando o troféu ao Gabriel, como Mick fez com Gabriel e no ano seguinte o próprio Gabriel com Mineiro.
6. Jessé não só conseguiu se salvar, como foi o grande campeão da Tríplice Coroa, chupa havaianada.
7. Quem acha que o Yago é aerialista está enganado, ele é tubirider.
8. Caio é o surfista mais injustiçado de toda história do surf profissional, temos uma matéria falando sobre isso há meses.
9. Tendo que enfrentar nas fases iniciais Gabriel, Julian, Filipe e Ítalo, conseguira Kelly se manter na elite para 2020?
10. Na próxima temporada teremos o reforço de Jadson com sua bóia cangaceira e os novatos Peterson Crisanto e Deivid Silva, substituindo Tomás Hermes e Ian Gouveia.
11. Ao contrário do que aconteceu na disputa do título do ano passado, esse ano Gabriel foi campeão sem margem para qualquer SUBJETIVIDADE.
Para os amantes do surfe, desejamos um feliz natal e um ano novo com saúde e boas ondas, 2018 foi pago, e, mais uma vez é hora de dizer, OBRIGADO GABRIEL!
Ps.: Matéria escrita e publicada no Facebook da Vision Surf em dezembro de 2018.
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