Em 1912 o surfista havaiano Duke Kahanamoku vencia uma prova de natação nas olimpíadas de Estolcomo, no pódio, ao receber a medalha de ouro ele expressou seu sonho de um dia ver o surfe nas olimpiadas. Kahanamoku conquistou três medalhas de ouro e duas de prata nadando em três olimpíadas, em 1920 ele foi o nadador mais velho a conquistar uma medalha de ouro em jogos olímpicos, aos 30 anos nas olimpíadas da Antuerpia, o havaiano morreu em 1968 aos 77 anos e não viu seu sonho virar realidade.
Em 1912 quando Duke externou seu sonho no pódio de Estolcomo, aqui no Brasil o surfe se quer existia, as primeiras práticas em solo tupiniquim foram registradas em Santos na década de 30. Entre 1912 e 2021 a televisão popularizou ainda mais as olimpíadas, o surfe cresceu e tornou-se um dos esportes mais praticados do mundo, 109 anos passaram-se, enfim a semente plantada por kahanamoku, considerado o pai do surfe moderno, tornou-se realidade. Em Tsurigasaki o surfe estreou nas olimpíadas.
Em um ano completamente atípico, o surfe estreou na olimpíada dos ginásios, estádios e praia vazia, certamente um cenário bem diferente dos sonhos de Duke, mas com o brilho de ser um esporte único, que encanta praticantes e não praticantes. O Brasil que nos anos 12 do século passado ainda não conhecia o surfe, em 2021 é a grande potência do esporte no mundo, certamente essa também é uma realidade bem distante dos sonhos de Duke Kahanamoku, mas não apenas dos sonhos de Duke, o mundo sonha com uma realidade diferente, em 45 anos de profissionalização do esporte, nunca houve um domínio tão discrepante no surfe mundial como a atual geração de brasileiros impõe ao resto do mundo.
Os jogos olímpicos de Tóquio começaram e o Brasil confirmou sua superioridade sendo a única nação a classificar seus atletas direto do Round 01 para o Rond 03, única nação com 100% (cem por cento) de aproveitamento. No segundo dia a bruxa estava solta na competição feminina, duas das favoritas, a heptacampeã Stephanie Gilmore e vice-líder do tour Johanne Defay, sucumbiram diante de das zebras Bianca Buitendag e Yolanda Hopkins, já a brasileira Tatiana Weston-Webb fez uma bateria irreconhecível, muito abaixo daquilo que ela vinha surfando, o resultado foi a derrota para a japonesa Amuro Tsuzuki.
Em um confronto entre americanos, Kolohe Andino, que voltou surfando melhor do que antes, despachou bicampeão John John Florence, a bateria mais emocionante do segundo dia foi o duelo entre os maiores rivais do surfe da última década, Gabriel Medina e Julian Wilson. Entre esses dois nunca houve bateria fácil, eles protagonizaram seis finais, com três vitorias para cada um e muitas críticas em algumas delas, Julian é aquele cara que a onda sempre vem nos 10 segundos finais, a nota também. Quis os Deuses do surfe que na despedida de Julian das competições, ele surfasse contra o seu maior rival e assim como tantas outras vezes ele achasse aquela velha onda no último minuto, dessa vez, para nossa felicidade ao menos momentânea, ele não virou, essa surpresa estava reservada para Gabriel no dia seguinte, mas até a nota do Julian sair, foi um suspense digno de Hitchcock.
O dia Final chegou, lá de onde está, Duke mandou um tufão para que as finais acontecessem em condições dignas de seus sonhos, o mar reagiu e alguns dos melhores surfistas do mundo puderam mostrar seu melhor. Embora tivesse grande e pesado, o jogo de aéreos continuou em pauta, e, nesse jogo, qualquer aberração por trás de erros passionais, reserva de escala, desafetos ou preferencias pessoas, podem ser facilmente justificados com o santo nome da subjetividade, não que ela não exista, o surfe é de fato um esporte subjetivo, mas estão tornando aquilo que deveria ser a exceção em regra, estão usando o santo nome em vão.
Duas baterias em especial devem ser observadas no dia final, a vitória de Ítalo Ferreira e a bateria que apresentou ao mundo, aquilo que só nós do surfe conhecíamos, a santa subjetividade.
Gabriel Medina e Kanoa Igarashi entraram na agua para a primeira semifinal das olimpíadas, todos viram a bateria, por isso é desnecessário repetir tudo que aconteceu, o importante neste caso é analisar o quanto são incompatíveis as notas dadas para Gabriel e Kanoa.
Gabriel aplicou dois aéreos de back, em ondas maiores, mais pesadas, voando mais alto, com mais amplitude, sem grab, com movimentos similares a alley oop e rotações bem próximas do full rotation, levou dos juízes duas notas na casa dos 8.00 pontos. Kanoa fez um aéreo de front, em uma onda menor, mais para o inside, em um movimento limpo mas sem amplitude na rotação, usando o recurso do grab para não deixar a prancha fugir, nessa onda Kanoa recebeu 9.33. Ai você pergunta, Foi roubo? A resposta é Não! Foi só mais do mesmo que acontece com Gabriel Medina desde que ele entrou na elite do surfe mundial em 2011.
É corriqueiro, Gabriel é bicampeão mundial e vencedor de 16 etapas da elite sendo sempre subjugado, não por desejo de pará-lo, mas sim para que o surfe dele caiba na régua, do 0 ao 10. Pelo poder de superação que Gabriel Medina tem, é difícil soltar logo de início a nota que ele merece, é preciso deixar espaço na régua, e, esse conceito, aliado ao despreparo de alguns juízes, justificáveis sob o argumento da entidade superior do surfe, vossa santidade da SUBJETIVIDADE, vem tirando das mãos de Gabriel resultados que deveriam ser incontestáveis, como o que aconteceu ontem contra o japonês Kanoa Igarashi. Se a onda de Kanoa realmente valeu 9.33, por tudo que já falamos acima, as duas ondas de Gabriel deveriam valer ao menos 9.5 pontos. Para colocar um pouco mais de polemica naquilo que já tem polemica em excesso, a “qualidade de alguns juízes”, na onda do kanoa, vimos uma das maiores discrepâncias de nota na história do surfe, se não a maior.
O Juiz neozelandês deu a Kanoa na polemica onda 9.8 pontos, o português deu 7.5, uma discrepância de 2.3 pontos na mesma onda, isso é injustificável, algo precisa ser revisto. Enquanto nada é revisto, mesmo com a carreira fantástica que tem, Gabriel vem sendo de longe o surfista mais prejudicado em sua trajetória por subjetividades no critério de julgamento. Quem não lembra aquela final contra o Julian em Portugal 2012, ou aquele erro de prioridade que provocou um silencio de 48 horas na WSL também em Portugal em 2019, ou aquela vergonha de Trestles em 2016, que fez até os próprios comentaristas protestarem no ar, ou aquele meio ponto a menos para o Ethan Ewing no Havaí, ou..ou..ou..ou... eu poderia falar por horas quantas vezes a subjetividade tirou vitórias consagradoras das mãos de Gabriel, mas isso é chato, além do mais é algo que nunca vai mudar, o talento de Gabriel é seu principal inimigo, e a subjetividade, explica qualquer aberração, como a que vimos ontem.
Kanoa Igarashi, que não tem absolutamente nada a ver com isso, além de ter feito o primeiro e único tubo olímpico, foi também o primeiro a avançar para a final, ele conheceu seu adversário ao ver Ítalo despachar Owen, que fez nas olimpíadas o seu melhor surfe esse ano, más antes da final masculina, vamos falar da feminina.
Quando todo o mundo aguardava uma final entre americanas, apareceu a zebra sul-africana Bianca Buitendag, a africana já havia derrotado a lenda Stephanie Gilmore nas fases iniciais, Steph é a dona de tudo no surfe, dos números, das performances, do estilo e da simpatia, não satisfeita com esse feito, Buitendag derrotou na semifinal a vice campeã mundial e maior promessa do surfe feminino Caroline Marks, avançando para encontrar na final a havaiana Carissa Moore. A havaiana é a surfista mais consistente do tour na atualidade, além de tetra campeã mundial é líder isolada do circuito esse ano, e, embora não tenha sido a Carissa que vimos nas competições da WSL, nem de longe Carissa deu chance para Buitendag, com isso ela se tornou a primeira campeã olímpica da história do surfe, um título justo para alguém que construiu uma carreira impecável, Parabéns Carissa, parabéns a todas as outras meninas, inclusive Tati e Silvana, que nos representaram muito bem.
Ao entrar na água para a bateria final, Ítalo mostrou ao mundo o quão grande ele é ao mudar de estratégia e abdicar dos aéreos, o recurso primário das estratégias que ele vinha usando ao longo da competição, nunca é demais dizer, um recurso vencedor. Justamente na final, ele optou em construir sua bateria manobrando, atacando junções imensas, cujo a pressão e a dificuldade para segurar a manobra é possivelmente tão grande quanto voltar de seus aéreos estratosféricos, e ai reside a grandeza de Ítalo Ferreira, ele saiu de sua zona de conforto, que são os aéreos de backside, para o desafio de vencer surfando na borda de frontside. Se alguém lembrar de uma vitória de Ítalo surfando com essas características, favor lembrem a esse colunista, porque eu não lembro. Ítalo atacou junções pesadas com agressividade, força e muita confiança, ele construiu um placar sólido de 15 pontos contra um Kanoa Igarashi que parecia perdido no lineup. A ousadia em sair da zona de conforto em momentos decisivos diferencia os grandes campeões, ao optar em formatar tudo até ali e fazer tudo novo, fez com que Ítalo Ferreira entrasse para a história não apenas pelo título inédito, mas também pela vitória de forma inédita, tornando um feito histórico em duplamente histórico.
Certamente, a 109 anos atrás, Duke Kahanamoku não sonhou com um brasileiro vencendo uma olimpíada, más é certo que o pai do surfe moderno sonhou com um ouro sendo conquistado da maneira grandiosa como Ítalo conquistou. Pelo sonho de Duke e pelo sonho de todos os brasileiros, é necessário dizer: Obrigado Ítalo Ferreira, você entrou para a história ao se tornar o primeiro surfista campeão olímpico, dando ao Brasil a primeira medalha de ouro nos jogos olímpicos de Tóquio. Foi grande, foi lindo, foi emocionante, foi digno de sua história e do sonho de Duke.
Aloha!
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